Por Bernardo Yoneshigue — Rio de Janeiro
O Ministério da Saúde, em nota técnica assinada no final do ano passado pela antiga gestão, alterou as recomendações de uso das vacinas contra a Covid-19 desenvolvidas com a tecnologia de vetor viral, a da Oxford/AstraZeneca e a da Janssen. As mudanças, que repercutiram apenas nesta semana nas redes sociais, envolveram uma análise de risco e benefício na população abaixo de 40 anos - público para o qual as doses deixaram de ser orientadas.“As vacinas de vetor viral estão indicadas para uso na população a partir de 40 anos de idade e; em pessoas de 18 a 39 anos de idade, devem ser administradas preferencialmente vacinas COVID-19 da plataforma de RNAm [como a da Pfizer/BioNTech]", diz o documento, que ressalta: "nos locais de difícil acesso ou na indisponibilidade do imunizante dessa plataforma [RNAm], poderão ser utilizadas as vacinas de vetor viral (Astrazeneca e Janssen)”.
A mudança definida em dezembro foi motivada por uma análise que apontou 98 casos com suspeita de trombose após as doses da vacina da Covid-19 notificados no e-SUS até o dia 17 de setembro do ano passado entre menores de 40 anos. Destes, 34 dos 40 considerados "prováveis ou confirmados" foram relacionados à AstraZeneca. Especialistas ouvidos pelo GLOBO esclarecem, porém, que a incidência dos eventos adversos, de 0,02 casos por 100 mil aplicações, é raríssima. Eles enfatizam ainda a importância do imunizante, da sua segurança e de seus benefícios.
— Observou-se que abaixo de 40 anos há um risco muito baixo de ter a trombose, são eventos raríssimos. No cenário de pandemia em que é preciso vacinar todo mundo, o benefício da proteção supera muito esse risco. Mas agora em que a pandemia melhorou e a doença está em baixa, e nós temos outra vacina que não causa evento adverso e é considerada mais eficaz, como a da Pfizer, nós vamos dar preferência a ela. Isso acontece o tempo todo, não é novo. Sempre que temos vacinas com melhor relação risco benefício nós substituímos — explica a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) de 2011 a 2019.
O professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz, Julio Croda, concorda, e lembra que, embora seja um caso grave, o risco de uma trombose era muito maior pela infecção com a Covid-19 entre não vacinados, do que pelo imunizante.
— O risco de você ter uma trombose ou morrer por Covid-19 era incrivelmente maior do que por qualquer vacina. Porque em cenários de baixa cobertura vacinal, é mais frequente um evento grave consequente da doença do que qualquer um resultante da vacina. Mas no momento que você já tem uma altíssima cobertura vacinal, e você tem acesso a outros imunizantes sem esse risco, você pode analisar o cenário de uma forma diferente — avalia o especialista.
Segundo a conclusão de um estudo conduzido pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, com quase 30 milhões de pessoas, e publicado na revista científica British Medical Journal (BMJ), "as taxas de incidência (de trombose) associadas à infecção por Sars-CoV-2 (vírus da Covid-19) foram muito maiores do que aquelas associadas a qualquer uma das vacinas, com o maior risco ocorrendo na primeira semana após um teste positivo".
Eles observaram, por exemplo, que em um universo de 10 milhões de pessoas vacinadas com a dose da AstraZeneca, poderiam ser identificados 66 casos de tromboembolismo venoso - quando o coágulo se forma nas veias profundas do corpo. Já para 10 milhões de indivíduos expostos à Covid-19, a incidência sobe para 12.614 ocorrências.
A trombose é um problema que ocorre quando a coagulação do sangue é elevada e forma coágulos em vasos e artérias que impedem a passagem do sangue e, consequentemente, a oxigenação de partes do corpo. Essas barreiras também são chamadas de trombos.
Vacinas seguem seguras, e decisão não é nova
Croda lembra que a mudança na recomendação para menores de 40 anos não é uma decisão de agora, e que foi tomada seguindo exemplos de outros países. Porém, destaca que não deve causar pânico, pois envolve muito mais uma precaução, já que existem outras doses no país que não oferecem esse risco (raro) de trombose.
— Não é nada fora do comum, não existe nenhuma novidade. O Brasil seguiu exemplos de países como Estados Unidos e Reino Unido, que dão preferência às outras vacinas. Isso está ganhando repercussão agora, mas já foi debatido, analisado, é algo comum na vacinação. Faz parte essa reavaliação como base no cenário epidemiológico. É uma precaução baseada na atual fase da doença, em que o risco de morte já não é mais tão alto — complementa Croda.
Domingues destaca ainda que os imunizantes podem ser orientados novamente para aqueles abaixo de 40 anos caso o cenário epidemiológico da Covid-19 piore no Brasil, e demande as aplicações. Além disso, reforça que os poucos efeitos adversos observados foram no período de 30 dias após a aplicação, por isso quem recebeu a vacina há mais tempo não deve se preocupar.
— Quem tomou a vacina pode ficar tranquilo, eu mesma tomei. Esses casos raros de trombose aconteceram até 30 dias após a vacinação. Quem já tomou não vai ter um efeito amanhã, ou daqui a 5, 30 anos. É importante passar essa segurança para a população. Até porque ela ainda pode ser usada para os acima de 40 anos. Ela foi limitada para uma população específica, pelo fato de termos outra vacina melhor no mercado — acrescenta a especialista, doutrora em Medicina Tropical.
O epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, reforça ainda que as doses da AstraZeneca e da Janssen não deixaram de ser consideradas seguras e eficazes e, portanto, não tiveram seu aval para uso no Brasil revogado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
— A vacina não foi proibida, desaconselhada ou teve sua efetividade revogada pela Anvisa. Os efeitos adversos, que são raríssimos, são totalmente comuns com qualquer produto medicamentoso. Se tomarmos um paracetamol, basta ver a bula que será observado que existem efeitos adversos, também raríssimos — diz.
Ele lembra também que, com a atualização de outras vacinas para cepas mais recentes do coronavírus, como no caso das doses bivalentes da Pfizer que ampliam a proteção contra a variante Ômicron, é normal dar preferência aos imunizantes mais novos.
— Num momento de escassez vacinal, a vacina da AstraZeneca, assim como as outras, foi extremamente importante e segura para prevenir as infecções, os casos graves e desacelerar a pandemia. Agora, com a atualização de tecnologias para as cepas que estão circulando, e num cenário em que não há mais escassez, não há sentido em seguir usando essas vacinas, que foram extremamente úteis no começo da pandemia, mas não tem a mesma atualização — explica o especialista.
— O problema está na forma de se comunicar isso para a população, porque se não for feito da maneira correta as pessoas vão achar que a vacina tinha algum problema, o que não tem. Isso precisa ser passado de uma maneira tranquila, sem criar medos ou pânico baseados em informações falsas — complementa.
E a produção da vacina AstraZeneca no Brasil?
O Brasil, por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), produz uma versão da vacina da AstraZeneca 100% nacional, resultado de um acordo de transferência de tecnologia firmado ainda em 2020 entre a fundação e o laboratório. Uma série de doses fabricadas em solo brasileiro já foram entregues ao PNI e disponibilizadas para a população.
Com as mudanças na recomendação sobre o imunizante no final do ano passado, surgiram dúvidas em relação à continuidade da produção do imunizante na Fiocruz. Em nota, o Ministério da Saúde esclareceu que não houve abandono da produção, e que o acordo continua valendo.
"O acordo de cooperação técnica com Biomanguinhos/Fiocruz para produção de insumos, incluindo a vacina AstraZeneca, segue vigente. O contrato com a Fiocruz prevê a entrega escalonada de doses, conforme o andamento e a estratégia de vacinação em todo o país", diz a pasta.
Como na fase atual da campanha a maioria das doses necessárias são as do imunizante bivalente da Pfizer/BioNTech, não há mais a alta demanda pelas vacinas da AstraZeneca no Brasil como aconteceu em 2021 e 2022.
Fonte: O Globo